Contos do vigário...(de réis)


Fábula

Estava ele ali, o jovem homem, sentado num canto da ramada em frente a sua casa, pensava na sorte que o destino lhe reservara e esperava pelo tempo.
E o tempo passou por ele e ele nem viu quando foi que o tempo passou.
Quando se deu conta novamente, era ele um homem maduro, sentado sob a mesma ramada a espera do tempo, enquanto pensava em como a vida poderia ser diferente se ele não tivesse ali sentado por tanto tempo.
E o tempo já desaparecia pelas encostas das matas muito a frente do seu tempo, e o homem nem teve tempo para vê-lo.
E continuou sentado na mesma curva da vida, à espera de um movimento do planeta que o tirasse do lugar, já não tinha mais os anos que correram a sua frente para brincar com a vida, enquanto ele, pobre velho sem forças, esperava sentado que o tempo passado lhe viesse buscar.
Mas o tempo nem o viu dessa vez que passou, tão às pressas em busca de novas aventuras que o velho, em sua senilidade achou que o tempo parou de passar.
Hoje o tempo vem acompanhado, uma bela dona ao seu lado, num clarão que há tempos não se via.
Ficou feliz o moribundo em perceber que ainda havia o tempo, depois de tanto tempo perdido, esboça um sorriso oco com sua boca vazia.
Porém a acompanhante do tempo se adianta em dar a notícia, de que todo o tempo jogado fora... Fazia falta agora que o seu tempo acabou.
Agora toda vez que o tempo passa por aqui, dá um tempo para ouvir o lamento da sombra que chora a dor de ter desperdiçado o seu tempo e nem mesmo por um momento ter vivido o seu tempo.
Conto comigo


Minha memória estende-se aos recônditos da infância infame onde sequer um nome me era atribuído, pois os filhos de minha mãe proliferavam feito insetos numa tenra lavoura e, a tesoura do destino nem se preocupou em amputar tal sorte, visto que o trabalho pesado precisa de muitos braços e poucas esperanças de uma vida melhor.
Ainda lembro da fome que rugia em nossos estômagos maltrapilhos que, de amizade carregava na barriga, algumas centenas de lombrigas para disputarem as poucas migalhas que nos era servido uma vez por dia, quando a colheita do patrão era generosa.
Meu pobre pai saia todo final de semana para pescar talvez uma solução para a miséria de sua vida e de suas crias que mal podia sustentar.
Obviamente levaria uma boa companhia para ajudar com suas grandes idéias, e com ela traçavam mil planos para apanhar os peixes e, de como seria diferente se já fossem crescidos os filhos e pudessem conduzir suas próprias vidas.
Mas, numa noite em que os peixes não quiseram acordar, meu pobre pai incitado pela amiga que sempre lhe acompanhava, entrou no rio para resolver a questão. No outro dia foram encontradas apenas as garrafas que serviam de vestes ao aguardente ingerido e, essa que foi a última companheira de meu pai, deu-lhe também o último beijo na despedida.
A viúva de meu pai muito chorou e desesperou e finalmente achou uma solução.
Como não tinha muito entendimento, resolveu deixar seus filhos com quem tivesse melhor conhecimento da questão, pois ela ainda era jovem e com certeza ainda poderia recomeçar a vida.
E foi assim que fiquei muito tempo sem ter família, sem saber se tinha ou não irmãos.
A viúva do meu pai casou-se de novo e teve com o outro marido, mais filhos que havia tido com meu pai, portanto tenho agora mais irmãos do que tinha antes.
A miséria não me matou, mas, a tristeza rompeu meus alicerces com a crença de que existe um deus que salva as criancinhas do mal.


Dúvidas de um sonho

Estava eu grávida bem á princípio, e você partiu.
Em meu quarto com suas luzes bruxuleantes eu vi o tempo passando em segundos, de repente já estava na hora do bebe nascer.
Eu estava só...
Desde o começo eu sabia que não era apenas uma criança e sim um casal.
As dores vieram...
Ali mesmo naquele chão frio me preparei para trazer os meus rebentos ao mundo.
No esforço do parto, trouxe um lindo garoto para a luz do mundo, seus olhos eram azuis, com a pele muito clara, lindo como o raiar do sol nas primeiras horas do dia.
Meu quarto permanecia na penumbra e aquele bebe me esboçou um sorriso completo com toda a brancura de seus dentes. Pensei comigo:
-Como um recém nascido poderia ter dentes?
Nisso ele já engatinhava por todo o aposento numa rapidez estonteante, ainda carregando pedaços da minha placenta.
Não pude acreditar naquilo que via.
Quando voltei a mim, me dei conta que eram dois bebes.
Toquei minha barriga e senti um buraco enorme em seu lugar. Numa exclamação profunda me perguntei:
-Onde está o outro bebe?
Foi quando ouvi uma voz angelical vindo do outro canto do quarto que dizia:
- Eu precisava me alimentar não é mamãe.
O choque foi tão apavorante que não tive reação alguma.
Então vi meu filho se transformando a cada segundo em tamanho e beleza.
Não podia me conformar ou mesmo aceitar que um bebe pudesse devorar outro no ventre de sua mãe.
E meu filho cresceu a olhos vistos em questão de segundos, nesses mesmos segundos que me arrastaram a caminhar lado a lado com ele por ruas esquisitas, e tão normais no dia a dia.
Devia ele já estar em sua adolescência quando uma hoste de homens hostis se interpôs no nosso caminho.
Qual foi a minha surpresa quando vi aquele moço lindo tal qual a representação do seu pai, ali do meu lado se transformando...
Num instante estava ali comigo a mais bela representação feminina que já vi, parecia alguém tirada dos contos de fada.
Tinha ela cabelos negros como a noite e um olhar tão sereno, que era capaz de trazer paz para todos os seres humanos e não humanos.
Fiquei parada por uns instantes tentando entender aquele mundo fantástico que acontecia ao meu redor, e como se estivesse lendo os meus pensamentos, ela me falou numa voz muito suave.
- Eu sou a sua filha que também é o seu filho, assim como aquele que é meu pai é também você e, eu estou aqui para despertar aquilo que dormia, porque você e o meu pai estão dormindo para a própria realidade do que são.
- Quanto ao meu irmão que me devorou, ele apenas se fundiu a mim para que nos tornássemos apenas um.
Nesse mesmo instante senti a aproximação dos homens mal-encarados, foi quando ela ergueu um pequeno bastão e todos caíram mortos.
Sem entender nada do que se passava, continuamos a caminhar lado a lado.
Ela ia me contando coisas da sua existência num dialeto muito estranho, mas que eu compreendia perfeitamente bem, como se soubesse a minha vida inteira.
Falou que assim como seu irmão, o pai também era muito fraco para entender os poderes do mundo, que era essa a razão dela assumir a forma de mulher, mas quando ela estivesse com seu pai, ela seria a representação dele, que na verdade ambos os filhos eram reflexos verdadeiros de seus pais.
Atônita com tantos acontecimentos nem me dei conta que estávamos tentando atravessar um rio de águas profundas. Num impulso natural enquanto ouvia, fui margeando o rio para encontrar um lugar que desse acesso a outra margem.
Desci por uns barrancos até chegar a um ponto que tinha um monte de pessoas também tentando passar. Qual foi a minha surpresa quando vi a minha menina erguer seu bastão novamente e as águas se abrirem enquanto ela caminhava por sobre as águas como se não tivesse peso algum.
Chamei as pessoas para cruzarem comigo para o outro lado, e as pedras iam subindo pelos caminhos onde havia muita lama. Terminada a travessia, o rio se pos no lugar como se nada tivesse acontecido.
Nunca senti tanta paz em minha vida, como na companhia desse ser que viera de mim mesma.
Paramos num lugar com muitas árvores, e por muito tempo nos olhamos fundo nos olhos, e houve um momento que eu não sabia mais se era ela que me olhava , ou era eu que ali estava, e quando me perdi no seu olhar, tive tempo apenas de ver uma nevoa branca subindo para o infinito.
Olhei ao meu redor, e tudo parecia ter sido um sonho, que aquilo tudo, na verdade não tinha acontecido, mas para meu espanto vi ali no mesmo chão frio do meu quarto onde dei a luz ao meu filho, apenas o bastão da minha filha.
Devo estar ficando louca, pensei.
Peguei do bastão para ver sua realidade, e eis que estava no meio da floresta diante de um outro rio e quando ergui o bastão as águas se abriram, e uma névoa me envolveu com sua presença inefável.
Nesse instante eu acordei transpirando a incógnita do sonho.